Nos últimos dias tenho lido muitos relatos de antigos combatentes, sejam feitos pelos próprios, sejam pelos seus familiares, e muitas vezes tenho dado por mim a chorar com vários destes testemunhos e a pensar "Como é que foi possível?" e depois penso... muitos nunca foram devidamente ressarcidos daquilo que sofreram, daquilo que perderam...
A Guerra Colonial começou em 1961, onde a União dos Povos Africanos (UPA), subsidiada pelo então governo dos Estados Unidos torna Angola no "palco da primeira resistência armada ao colonialismo português." Em 1963, a ação estende-se à Guiné-Bissau e no ano seguinte, a Moçambique.
A NATO, a que Portugal tinha aderido, era também contra a existência de Colónias (e a solução encontrada por Salazar foi mudar-lhes a denominação para Províncias Ultramarinas). "Simultaneamente os Estados Unidos continuavam a pressionar na frente diplomática ao ponto de no dia 15 de março de 1961 nas Nações Unidas, ao lado da URSS, condenarem a repressão que se seguiu ao ataque às prisões de Luanda na madrugada de 4 de fevereiro por parte de nacionalistas angolanos." Salazar, que teria sido avisado "pela CIA de um ataque da UPA no norte de Angola a coincidir com o debate sobre Angola nas Nações Unidas," não confiou na veracidade da informação. O gatilho desta guerra, que duraria 13 longos anos "começou norte de Angola, distrito de Malange, na Baixa do Cassange, motivado pelas condições de trabalho a que os agricultores estavam sujeitos," que os fazia viver na "miséria," e pela revolta que sentiam contra os maus tratos a que eram sujeitos pelos "funcionários da Cotonang." Este não foi episódio único e já a PIDE estava no local a realizar interrogatórios. "Os acontecimentos na Baixa do Cassange prolongam-se até março mas logo a 6 de fevereiro um loockeed PV-2 Harpoon bombardeia a região com napalm. O número de mortos não é certo, variando entre as dezenas e os milhares." (Na exposição que está no quartel do Carmo, podemos ver as máscaras de proteção utilizadas).
Mas o MPLA atribui o início das hostilidades ao momento do ataque às prisões de Luanda ocorridas a 4 de fevereiro desse ano, depois do navio Santa Maria (desviado pelo capitão Henrique Galvão), ter atracado em Luanda.
"No dia 15 de março, tal como a CIA tinha dito e tinha feito chegar a informação a Salazar, a UPA ataca dezenas de fazendas de café no norte de Angola são atacadas em simultâneo. Os ataques provocam 800 mortos portugueses e africanos," o que terá "sido determinante para o governo português perceber que a revolta estava em curso." Estes acontecimentos no norte de Angola, "lançaram o pânico entre os colonos portugueses. No espaço de uma semana, mais de 3 mil colonos foram evacuados desta região para Luanda." A situação complicava-se cada vez mais, com a demora da chegada dos reforços vindos da capital (chamada "metrópole") e com a formação de guerrilhas. "No dia 7 de maio, o governo do distrito de Carmona, ameaçado pelo assassinato de centenas de trabalhadores indígenas das suas fazendas, pedia ao governo-geral que enviasse urgentemente reforços militares." Várias operações vão tendo lugar, entre elas, a Operação Viriado, ou a Esmeralda, mas de ambos os lados os mortos e feridos são demasiados!
Na Guiné, a situação já precária e sob a influência do que se passava noutras "províncias", leva a que a revolta começa em 1963, com guerrilhas do PAIGC a penetrar no território. "A fim de destruírem as bases de apoio às forças rebeldes, aviões portugueses largaram bombas e napalm sobre várias aldeias guineenses, situação que viria a ser denunciada pela Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas desse ano." A 25 de setembro de 1964, "tinham lugar os primeiros ataques da FRELIMO, em Cobué, no distrito do Niassa." Estava instalada a guerra em três frentes.
Em maio de 1968, o regime por temer a perda de controlo da situaçã na Guiné, "substitui os comandantes na altura, pelo Brigadeiro António Spínola" que era "filho de uma família abastada," tendo o seu pai sido "inspetor-geral de Finanças e chefe de gabinete de Salazar no Ministério das Finanças." António Ribeiro de Spínola é nomeado "governador e comandante-chefe da província." Spínola tinha estado em Angola entre 1961 e 1963 e conhecia já bem a especificidade dos movimentos de guerrilha. Mas, apesar do aparente sucesso da operação secreta, Mar verde, o "agravamento da situação na Guiné-Bissau" levou a que Spínola começasse "a duvidar cada vez mais da solução militar para este território. Em maio de 1972, o general encontrou-se no Senegal com o presidente Leopold Senghor a fim de preparar negociações de cessar-fogo com o PAIGC e de encontrar uma solução política para a guerra. Esta solução seria, no entanto, rejeitada por Marcello Caetano." Em janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi "assassinado, em Kaloum," e segundo algumas versões, "a PIDE ou o próprio Spínola teriam estado envolvidos na organização e aprovação do atentado," o que foi negado pelo "o governo português." Em março desse ano, o PAIGC começou "também a utilizar misseis soviéticos terra-ar, acabando assim com a supremacia aérea portuguesa, essencial à contra-guerrilha."
Em Novembro de 1973, Spínola "é convidado por Marcello Caetano," que tinha substituído Salazar, "para ocupar a pasta de ministro do Ultramar, cargo que não aceita."
A 17 de Janeiro de 1974, Spínola é ainda "nomeado para vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, por sugestão de Costa Gomes, cargo de que é demitido em Março, por se ter recusado a participar na manifestação de apoio ao Governo e à sua política." Acabaria, numa reviravolta que se pode dizer histórica e inusitada, por ser ela a aceitar, no Quartel do Carmo, a rendição do Governo, ou seja, a aceitar o poder em nome do Movimento das Forças Armadas, embora depois disso, nem sempre tenha estado do lado dos mesmos.
Destes conflitos, ou - se quisermos juntar "tudo" - da Guerra Colonial, chegaram muitos estropiados, outros tantos mortos! O que eu acho que se tem de trazer, ainda, para as mesas de debate, são a falta de cuidados que foram prestados às vítimas reais e com nome deste conflito! Depois da Revolução, não foram respeitados os direitos destes homens que, saindo do país (muitos deles obrigados), deixaram cá mulher, namorada, filhos, pais, avós... uma casa e um trabalho a que muitos não conseguiram regressar. Regressaram eles homens diferentes! Com outros medos e terrores e, também, alguns deles, com outros valores!
Um dos testemunhos que estive há pouco a ler foi o de uma filha. A filha de um homem que ela carateriza como trabalhador e lutador, apesar de ter sofrido graves ferimentos que o tornaram num dos muitos estropiados de guerra. Ela descreve que, na convivência com o seu pai, se foi apercebendo das graves consequências de uma guerra maldita - que muito além de físicas - são também psicológicas. Se lerem a totalidade deste relato talvez sintam, como eu, um murro no estômago. Desse relato são os seguintes excertos:
Creio que nunca fez as pazes consigo próprio por isso. Ou, pelo menos, nunca conseguiu apaziguar-se. Por ter marchado para o matadouro. Por se ter tornado carne para canhão. Por ter matado, visto morrer. Pelos horrores que fez, os horrores que viu fazer. “Tu não imaginas o que eu fiz”, dizia-me.
Quando tomavam consciência de que a nossa História, a história do colonialismo português, que não teve nada de brando, a história da Guerra Colonial, eram permanentemente branqueadas, e que eles próprios se tornavam num estorvo difícil de gerir. E a sua perplexidade quando, ainda hoje, a Guerra Colonial é nomeada de guerra do ultramar, quando as ex-colónias são chamadas de províncias ultramarinas.
Muitos dos que vinham feridos com gravidade, eram "descarregados" durante a noite para que o país não os visse e tivesse noção da realidade. Diz-se que "noventa por cento da população jovem masculina do país foi mobilizada para a Guerra do Ultramar." E diz-se também que esta Guerra "causou cerca de 10 mil mortos e 20 mil inválidos entre os soldados e mais de 100 mil vítimas entre os civis que viviam nas colónias."
Vejam este pequeno filme da RTP Ensina e oiçam também esta canção de Paco Bandeira, que retrata as dificuldades dos tempos da Guerra Colonial.
Num outro testemunho, publicado no CM, um ex-combatente (da Cavalaria 2, Moçambique) explica como foi a sua passagem pela Guerra Colonial.
Passados seis meses em Lourenço Marques calhou-me a parte difícil. Estive 18 meses em Mueda, o coração da guerra. Havia picadas, minas, escoltas a viaturas para abastecer, capturas é que não fazíamos. As picadas eram as estradas sem alcatrão, com muitas minas anti-carros e anti-pessoais. Feridos e mortos eram muitos, e botas ainda com o pé, separadas do corpo, era o que se via mais. Ainda me custa falar disso; as cenas voltam à memória quando se fala delas.
Nas colunas, havia um grupo que ia à frente com arame grosso, e esses é que sofriam. Quando detectavam alguma coisa eu tinha o papel ingrato de decidir o que fazer. Éramos obrigados a levantar minas, pois o Salazar queria exibir isso como troféu junto das Nações Unidas, mas nós fazíamos o rebentamento, pois era menos arriscado. Ainda assim, houve muitos feridos e estávamos dependentes da sorte.
E os traumas... os traumas não eram só físicos. Leiam o depoimento desta mulher, de nome Diana, que fala da situação que viveu ao longo da sua infância e juventude com o pai (ex-combatente). Fica aqui apenas um pequeno excerto, o resto é o retrato de tantas outras casas e famílias portuguesas.
"Não me lembro de o meu pai me dar carinho, sou a mais velha de sete filhos e não me lembro de andar ao colo. Quando ele chegava do trabalho, a minha mãe fazia questão de eu já estar a dormir porque pela mais pequena coisa havia logo um estalo... Às vezes olhava para outras crianças na escola e fazia comparações, via os pais a passar a mão pela cabeça dos filhos e pensava que gostava que o meu pai me fizesse o mesmo."
No mesmo artigo, existem outros testemunhos, bastante dolorosos. O de Sandra é um pouco diferente, mas retrata também um pai sempre em alerta.
"A minha mãe contava que, quando se casaram, o meu pai se escondia debaixo da cama por causa dos foguetes, não podia ouvir barulhos, era um pouco agressivo com os animais. Mas nunca foi agressivo para a minha mãe, nem para nós."
Em ambos os casos, a ajuda extende-se aos filhos e às mulheres destes ex-combatentes, que sofrem de stress pós-traumático secundário, por conviverem ao longo de vários anos com as ações e reações dos seus familiares. Infelizmente, a ajuda é pouca. "Existe uma Rede Nacional de Apoio (RNA) para acompanhar os militares com perturbação psicológica crónica resultante da exposição a fatores traumáticos de stress durante a vida militar."
A RNA, tem como principais objetivos: "informar, identificar e encaminhar os casos de PTSD adquiridos em contexto de guerra, e prestar serviços de apoio médico, psicológico e social aos utentes da RNA, em articulação com o Serviço Nacional de Saúde (SNS)."
Segundo dados de 2019, do "Ministério da Defesa, há 2073 utentes da rede inscritos nas cinco associações protocoladas: Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA), Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (APVG), Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra (APOIAR), Associação de Combatentes do Ultramar Português (ACUP) e Associação Nacional dos Combatentes do Ultramar (ANCU). Das pessoas que recebem apoio desta rede, 139 são mulheres e 85 são filhos."
Fontes:
https://www.esquerda.net/dossier/estilhacos-de-uma-guerra-maldita/63480
https://media.rtp.pt/descolonizacaoportuguesa/pecas/a-guerra-instala-se-em-tres-frentes/
https://www.rtp.pt/programa/tv/p32446/e26
https://www.presidencia.pt/presidente-da-republica/a-presidencia/antigos-presidentes/antonio-de-spinola/
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/09-mar-2019/interior/guerra-colonial-os-traumas-herdados-pelos-filhos-dos-ex-combatentes-10480419.html/
https://www.cmjornal.pt/domingo/detalhe/nao-houve-dia-sem-mortos-e-estropiados